UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO
DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DISCIPLINA:
SEMINARIO
TEMATICO DE POLÍTICA I
PROFESSOR:
MATEUS VENCESLAU MARREIRO
DISCENTE:
CLAUDIO
FERNANDO RAMOS
ATIVIDADE:
ENSAIO
TÍTULO:
A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA
E A RECONFIGURAÇÃO DE ANTIGAS
CRISES
1.0
- INTRODUÇÃO
O
propósito desse ensaio é o de recolher “amostras” / “recortes” (samples)
de determinados trechos de obras filosóficas e/ou sociológicas a fim de poder
compreender melhor alguns fatores políticos que, ao longo dos anos, têm
ocorrido no âmago da democracia brasileira. Historicamente, sabemos que a nossa
democracia ainda é por demais infante; entendemos que essa condição temporal
cria uma dificuldade extra para todos aqueles que pretendem fazem uma análise
coerente e significativa da mesma. Tudo ainda é muito recente e imprevisível;
e, como se não bastasse, estamos envolvidos no processo; ou seja, residimos no
“olho do furacão”. Não há um necessário distanciamento temporal, nem geográfico,
que nos permita fazer uma abordagem mais holística e “imparcial” dos fatos
sobre os quais pretendemos abordar. Guardada as devidas proporções, é o mesmo
que desejar enxergar toda Via-Láctea a partir de um telescópio no
Deserto do Atacama. Por mais que se esteja em um local privilegiado e o
instrumento de aferição seja de excelente qualidade, ainda assim a tarefa é
inexequível. Por isso, o ato de samplear, expressão inglesa que envolve
recortar e modificar trechos de músicas para criar melodias novas, nos servirá
de método primário. Através do sampleamento (sampling), pretendemos
extrair amostra de vários contextos diferentes para tentar, a partir deles,
compreender parte da democracia contemporânea em nosso país e, por fim, como
antigas crises, próprias do “jogo democrático”, retornam, reconfiguradas, de
tempos em tempos. Diante de tudo isso, achamos prudente enfatizar que o
presente texto, longe de ser um artigo científico, está mais para um exercício
literário, onde proposições serão apresentadas sem que, no entanto, sejam
tomadas como verdades monolíticas, ou seja, absolutas e inquestionáveis.
2.0 - DESENVOLVIMENTO
2.1 – PODER, LEGITIMIDADE,
RECONFIGURAÇÃO DOS CLÁSSICOS
Daremos
início as nossas considerações a partir da obra: Como as democracias morrem
(Levitsky; Ziblatt, 2018). Obra essa que, no seu capítulo de número quatro (Subvertendo
a Democracia), nos apresenta reflexões sobre algumas fragilidades presentes
nas instituições democráticas contemporâneas; fragilidades ocasionadas por
líderes, movimentos e ideologias que, pontualmente e isoladas, não são capazes
de romper abruptamente com o sistema político vigente; mas que, no entanto, o
fazem paulatinamente, corroendo-o de dentro para fora.
Tomando
esse fato como referência, começaremos por fazer uma espécie de diagnóstico das
três últimas grandes crises políticas do Brasil, a saber: o questionamento das
urnas eletrônicas por intermédio de Aécio Neves em 2014, o impeachment de Dilma
Rousseff em 2016 e a atual e intensa polarização política entre dois atores do
cenário político nacional: Lula e Jair Bolsonaro (tentativa de golpe em 08 de
janeiro 2023).
Elencarmos
esses três episódios da história política nacional, porque estamos convencidos
de que as inúmeras crises dentro do sistema democrático estão muito longe de
serem fenômenos inéditos e isolados, mas sim, reconfigurações de dilemas
clássicos sobre as múltiplas formas do exercício do poder político (ética,
legitimidade, autoridade etc.). Temas como esses, já foram largamente pensados
e discutidos por filósofos como: Nicolau Maquiavel (1469-1527), em O
príncipe (2010), e Thomas Hobbes (1588-1979), em Leviatã (2003). Sem
ter que ser muito imaginativo, acreditamos que as tensões contemporâneas da
política brasileira nos remetem às tradições clássicas da origem da sociedade
civil em Hobbes 2003 e a razão de Estado (racionalismo político) em Maquiavel
2010. Segundo esses filósofos, um determinado tipo de Estado (sociedade civil)
pode ter suas relações institucionais fortalecidas ou corrompidas, tudo irá
depender, em larga medida, do tipo de relação de poder nele contido. Em razão
disso, de maneira análoga ao que disse os antigos, acreditamos que situação
semelhante se dá com os sistemas democráticos de inúmeros países contemporâneos;
ou seja, as democracias morrem ou se enfraquecem, não por rupturas abruptas,
mas pela corrosão paulatina da legitimidade institucional a da confiança
pública (Levitsky e Ziblatt, 2018).
2.2 - SUBVERSÃO DEMOCRÁTICA E A
LÓGICA DO PODER
De
acordo com os autores Levitsky e Ziblatt (2018), a subversão democrática
contemporânea raramente ocorre por meios de golpes militares clássicos; aqueles
perpetrados por Generais, comandantes supremos dos Exércitos etc.; ao
contrário, na maioria das vezes ela manifesta-se pela cooptação das
instituições legítimas, por intermédio de líderes eleitos democraticamente.
Essa legitimidade conquistada nas urnas, é, muitas vezes, utilizada contra a
própria legitimidade do sistema democrático; ou seja, tentasse mudar a regra do
jogo bem no meio da partida. Com isso, minam-se as normas formais e informais
da convivência política. Alguém disse que a democracia seria a arte de viver
com os contrários; todavia, no caso da subversão, parece que isso não voga. Aquele
que subverte, deseja homogeneizar o poder e, ao fim de tudo, governar com os
pares, sem oposições e contraditórios. Vejamos o caso de um dos candidatos à
Presidência da República em 2014. Os questionamentos levantados pelo
presidenciável Aécio Neves acerca da lisura do processo eletivo, transparência
das urnas eletrônica etc., inaugurou um ciclo de deslegitimação eleitoral que
fragilizou a confiança de inúmeras pessoas na política como espaço de disputa
civilizada pelo poder (Veja, 2023). Esse descrédito de Aécio Neves possibilitou
o aparecimento de brechas para a normalização de futuros discursos autoritários
e atuais radicalizações por parte de partidos políticos e seguimentos
específicos da sociedade civil. Indo aos clássicos, mas especificamente em
Nicolau Maquiavel (1469-1527), encontramos uma certa afinidade com o que
aconteceu no Brasil em 2014 e o que ele escreveu em sua obra O príncipe.
Ao tratar da manutenção do poder, o italiano disse que o governante deve
compreender os humores do povo e das elites, utilizando os meios necessários,
inclusive a força e o engano, para conservar o Estado. Vendo por esse ângulo, a
política não deve ser encarada como espaço para utopias e éticas
transcendentes, mas sim como campo de cálculo (racionalismo político) e
pragmatismo utilitarista. Podemos concluir, a partir de Maquiavel, que a crise
na lisura do pleito, suscitada por Aécio Neves, não deve ser reduzida apenas a
má conduta de um cidadão que não soube perder, mas sim, como fruto de uma luta
constante, pela manutenção do poder, em um território volátil onde a moral das
ações e a eficácia dos objetivos se tensionam initerruptamente.
2.3 - O IMPEACHMENT E A EROSÃO DAS
NORMAS DEMOCRÁTICAS
Os
cientistas políticos afirmam que quando o impeachment é desviado de sua função
original, o de afastar o mal gestor das prerrogativas do poder, e passa a ser
utilizado de maneira que compromete a estabilidade e a previsibilidade das
regras do “jogo político”, ele, ao invés de corrigir injustiças, torna-se
instrumento para a injustiça (erosão democrática); ou seja, ele passa a predar
o próprio sistema que, ao menos em teoria, deveria preservar. Para muitos
brasileiros, o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e a posterior ascensão
de Michel Temer à Presidência da República, evidenciam esse tipo de predação do
sistema democrático brasileiro. Um dos movimentos que permite a subversão
democrática, segundo Levitsky e Ziblatt (2018), é o uso de instrumentos legais
para fins ilegítimos. Segundo uma revista especializada em política e economia,
algum tempo depois dos fatos, o próprio Michel Temer reconheceu que o
afastamento da presidenta, como ela gostava de ser chamada, decorreu, em larga
medida, da recusa dela em apoiar o programa Ponte para o futuro (conjunto
de reformas econômicas neoliberais); ou seja, a destituição presidencial foi,
antes de tudo, uma disputa por determinado projeto de poder (Carta Capital,
2023).
O
impeachment de Dilma Rousseff expôs algumas das muitas fragilidades do sistema
democrático brasileiro, embora não o tenha destruído, essa segunda grande
crise, apresentamos o Aécio Neves como tendo sido o causador da “primeira”, o
tornou um poco mais vulnerável. A desconfiança, plantada em 2014, estava dando,
já em 2016, o seu primeiro grande fruto, e ele foi bem amargo: tornou-se comum,
na política brasileira, ser intolerante com os que discordam. Passou a haver
uma certa reconfiguração do campo político, principalmente no que diz respeito
as alianças políticas; uma espécie de utilitarismo ideológico, exacerbado e
unilateral tornou-se paradigma para ações dos atores e dos partidos políticos.
Essa reconfiguração, ao menos figuradamente, nos faz lembrar da lógica
hobbesiana, quando ele discorre sobre o poder soberano. Para Hobbes (2003, p.117),
o Estado é consequência de um pacto racional que surge para evitar o “estado de
natureza” (um estado hipotético). Nesse hipotético estado, o homem,
diferentemente do que disse um certo filósofo de Estagira1, é o seu
maior inimigo, lobo de si mesmo; dito de outra maneira, o homem é egoísta por
natureza e não tem prazer na convivência como seu semelha. Analogamente, quando a confiança na autoridade
se dissolve, as instituições se tornam palco de competição destrutiva, e a
política pode degenerar em guerra de uns contra os outros (governo despótico,
guerra civil, ideologias sectaristas etc.). Para aqueles que não viram um
impeachment, instrumento legal da regra do jogo político, mas sim um golpe da
democracia contra ela mesma ou, melhor ainda, um golpe sem o fim da democracia,
conscientemente ou não, entendem que o afastamento ilegítimo da presidenta
marcou a ruptura do pacto civil que sustenta a legitimidade democrática,
evidenciando uma espécie de retorno simbólico ao estado de natureza hobbesiano:
todos contra todos.
1Aristóteles (384-322 a.
C.) disse que o homem é um animal político (ou zoon politikon) em sua
obra "A Política". O filósofo foi o primeiro a trazer o
conceito de ética na política e via o Estado como natural e único. Nesta obra,
Aristóteles reflete como as instituições poderiam promover o desenvolvimento e
a felicidade coletiva, discutindo em profundidade as formas de governo e os
mecanismos que organizam a sociedade.
2.4 - A POLARIZAÇÃO E A TENTATIVA
DE RETORNO AO AUTORITARISMO
A
incompreensível e inaceitável polarização política envolvendo a pessoa do Lula
(atual Presidente da República) e a pessoa do Bolsonaro (ex-Presidente da
República) radicalizou de vez o cenário político brasileiro; que já vinha
claudicante, como já dissemos, desde 2014. A disputa eleitoral de 2022 foi
transformada em confronto moral entre duas forças antagônicas: o “bem” e o
“mal. Essa perspectiva maniqueísta do mundo, não constitui nenhuma novidade; já
no século III d.C, lá para os lados da antiga Babilônia, atual Iraque, um certo
profeta de nome Mani (ou Maniqeu) já propalava uma determinada doutrina
filosófica/religiosa sobre a dicotomização das coisas existentes. No entanto,
no cenário político nacional, as coisas ganharam proporções hiperbólicas;
imaginamos o que Mani pensaria sobre isso, se vivo estivesse. Esse maniqueísmo
político-institucional comprometeu os fundamentos da República Democrática,
viciou as mediações institucionais e, por fim, ensejou a criação de um ambiente
“propício” para a tentativa de um golpe em 08 de janeiro de 2023. Nessa data,
grupos enviesados por ideologias da extrema direita (bolsonarismo) atacaram as
sedes dos três poderes em Brasília (BBC, 2023) e tentaram, “jogando dentro das
quatro linhas”, pôr fim a existência da infante democracia brasileira. Levitsky
e Ziblatt (2018) denominam esse fenômeno da seguinte maneira: erosão
normativa. Para eles, isso ocorre quando o respeito pelas regras
democráticas cede espaço à lógica da eliminação do adversário. Mais uma vez,
retornando aos clássicos, Maquiavel e Hobbes oferecem chaves de leitura
distintas, mas complementares para a nossa tentativa de compreensão da política
contemporânea brasileira. A filosofia de Maquiavel afirma que a estabilidade
depende da virtú (capacidade) do governante, ou seja, da sua habilidade
de agir segundo as circunstâncias e manter o controle da fortuna (sorte,
o imponderável). Quanto ao Hobbes, sua filosofia sustenta que somente a força
coercitiva do Leviatã (o poder do Estado) seria capaz de conter a
desordem. Atualizando essas duas perspectivas, percebesse que a nossa
República, apesar de ter se mantido firme diante das intempéries políticas,
demonstra uma certa ausência das prerrogativas necessárias apontadas pelos
filósofos. Nossos líderes têm se mostrado incapazes de sustentar o consenso
político e nossas instituições, ao invés de força (não deixamos de reconhecer
que existem pontuais e importantes exceções), têm se mostrado frágeis e
lenientes quando fazem uso da autoridade legítima. Sendo assim, acreditamos que
sem o fortalecimento das instituições democráticas, sem a busca pelo diálogo,
necessário para o consenso político, e sem o fomento do pleno exercício da cidadania,
a porta permanece aberta para futuras e temerárias crises democráticas; não se
sabe ao certo quando, como, nem os porquês de novos confrontos políticos, mas,
diante do quadro atual, é possível prever que eles virão.
Nesse breve ensaio, tentamos
demonstrar que a crise da democracia é eminentemente uma crise de legitimidade;
pois o poder desprovido de confiança pública, perde seu fundamento ético e
simbólico. Os três fatos recentes da história política nacional elencados por
nós, ocorridos em: 2014, 2016 e 2023, nos levam a crer que, em nosso país, a
democracia do amanhã terá que aprender a conviver e a superar a reconfigurações
de antigas crises democráticas.
3.0 - CONCLUSÃO
As
crises políticas brasileira dos últimos anos: questionamento das urnas 2014,
impeachment 2016, polarização (até hoje) e tentativa de golpe 2023, revelam que
a democracia contemporânea enfrenta velhos dilemas sob novas formas. Levitsky e
Ziblatt (2018) foram felizes ao afirmarem que as democracias morrem lentamente,
corroídas por dentro, pela perda da confiança mútua e pelas manipulação das
normas. Todavia, como também foi o nosso objetivo demonstrar, essa degradação
do sistema não é necessariamente um fenômeno inédito; o que ocorre de fato é
uma reatualização das tensões, abordada pelos clássicos (Maquiavel e Hobbes),
entre poder, legitimidade e autoridade.
O
italiano advertiu que a política exige do governante prudência e força; ao
passo que o inglês ensinou que o poder legítimo (nascido do contrato) deve
garantir a paz e evitar o caos (silenciar o lobo em cada um). O Brasil,
conscientemente ou não, parece ignorar essas orientações. Nem assegura a
estabilidade institucional, os poderes instituídos divergem internamente e
externamente (apresentam uma grande dificuldade na construção de consensos),
nem reconstrói a legitimidade simbólica do poder (há uma desconfiança
generalizada nas instituições públicas). Há quem esteja procurando um culpado
para tudo isso, uma causa, uma verdade (o bem e o mal), mas talvez não haja
verdade alguma, só uma incontrolável vontade de tê-la. Nós também não temos
respostas; mas, ao menos momentaneamente, tornaremos nossa as palavras do
compositor que diz nos versos da canção:
Quem ocupa o trono tem
culpa
Quem oculta o crime também
Quem duvida da vida tem culpa
Quem evita a dúvida também tem
(Umberto Gessinger, 1988)
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
VEJA. Aécio, que questionou urna
eletrônica, vai debater volta do voto impresso. 2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/aecio-que-questionou-urna-eletronica-vai-debater-volta-do-voto-impresso/ Acesso em: 10/11/2025
BBC.
8 de janeiro: entenda o que motivou e como foi a invasão dos prédios dos três
poderes em Brasília. 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1kvvdpl0m3o
ARTA
CAPITAL. Temer: impeachment ocorreu porque Dilma recusou Ponte para o Futuro.
2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/temer-impeachment-ocorreu-porque-dilma-recusou-ponte-para-o-futuro/
HOBBES,
Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 117.
LEVITSKY,
Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. 1. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 2018.
MAQUIAVEL,
Nicolau. O príncipe. Trad. Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes,
2010. p. 59.
SOMOS
QUEM PODEMOS SER – Engenheiros do Hawaii 2018. Disponível em: https://www.letras.mus.br/engenheiros-do-hawaii/12899/.
Consultado em 27/11/2025